domingo, 23 de maio de 2010

Shinto



Quando nos desalenta o infortúnio,
por instantes nos salvam
as aventuras ínfimas
da atenção ou da memória:
o sabor de uma fruta, o sabor da água,
esse rosto que um sonho nos devolve,
os jasmins inaugurais de novembro,
o anseio infinito de uma bússola,
o livro que julgávamos perdido,
o pulso de um hexâmetro,
a breve chave que nos abre uma casa,
o aroma da biblioteca ou do sândalo,
aquele antigo nome de uma rua,
as cores de um mapa,
uma etimologia imprevista,
a lisura da unha lixada,
a data que buscávamos,
contar as doze escuras badaladas,
uma brusca dor física.

Oito milhões são as divindades do Shinto
que viajam pela terra, secretas.
Esses modestos numes só nos tocam,
tocam-nos e nos deixam.

Jorge Luis Borges - "A Cifra" - 1981