terça-feira, 10 de março de 2009

A CIDADE ILHADA



Uma frase de Julio Cortázar volta e meia me vem à mente: “A realidade é minha grande mulher”. Penso que o significado do significado desta frase pode ser usado em diversos tipos de situação. No caso, ele estava falando de onde vem a inspiração para escrever.

E é justamente com uma citação de Cortázar que começa o livro de contos “A Cidade Ilhada”, de meu conterrâneo Milton Hatoum. Reproduzo aqui: “O conto é uma pequena e perfeita esfera verbal que guarda uma única semente a ponto de eclodir.”

Depois do impacto de “Órfãos do Eldorado” e “Dois Irmãos” neste início de ano, prometi a mim mesmo afrouxar o lastro emocional que me liga a Manaus, a cidade ilhada do título, e procurar outros autores. Alguns entraram na fila. Mas o Hatoum sempre fura a fila. É que nem disco do Roberto Carlos. Tá o nome do sujeito na capa? Pega. Nem que seja pra dar uma olhada. Ou uma espiadinha, como diz o outro.

Manaus é uma cidade ilhada por excelência. Lá não se chega por terra. Só é possível chegar de barco ou de avião. O acesso difícil e o rápido desenvolvimento através das indústrias que lá se instalaram, a praga dos “condomínios inteligentes” em contraste com a exuberância da natureza, a ocupação desordenada, a questão militar e estratégica transformaram a região em uma província moderna.

A parte boa é que toda vez que leio os textos de Hatoum lembro da terra e do mormaço, do remanso das águas, da leseira de fim de tarde por causa do calor, do cheiro das folhas no quintal, do café da manhã farto, das chuvas certeiras e torrenciais, das primeiras descobertas do corpo, lembro das histórias que meus tios e tias me contavam. Histórias extraordinárias, abertas, carregadas de hiatos, mistérios, dissimulação e formalidade.

Muito parecidas com os contos deste belo livro. Como a história do cientista japonês que navegou sozinho o Rio Negro, a viagem de Euclides da Cunha, o poeta que nunca saiu da praça mas que conhecia Paris inteira, traições, brigas irreconciliáveis, amores perdidos, honra, fama, índios, nordestinos, ingleses e árabes. Tudo junto e misturado.

Diria o escritor argentino Ricardo Piglia: “O conto reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta.”

Palavras do próprio Hatoum: “Manaus me persegue onde quer que eu vá.” Também sinto que nada me afasta de lá. Há uma equivalência que não foi destruída por todos esses anos. É o desejo do amor e da literatura que nos aproxima.

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